Me lembrei de uma conversa que tive com um belga na viagem à Europa que fiz em 2006. O cara era gerente de uma loja do Carrefour e tinha largado o emprego para viajar.Ele estava mochilando há uns 05 meses e eu há uns 02. Estávamos na Eslovênia, dividindo uma cerveja de madrugada no quintal do albergue onde nos hospedávamos. Durante uns 10 minutos, apenas uma frase foi emitida.Por ele:
- Backpacking is hardwork...
Eu, em silêncio, fiquei pensando na frase,sem entender exatamente o que ele tinha querido dizer.
Copio aqui um trecho do meu diário escrito aproximadamente 02 meses depois desse "diálogo":
"Sentado na rodoviária de Salamanca. 13:30h. 14:30 parte meu ônibus rumo a Santiago de Compostela. Chegada prevista para 20:45h. Depois de 4 meses, 6:15h em um ônibus apertado é uma eternidade. Mas vamos lá, é por isso que estou aqui. Esse é o trabalho, lutar com você mesmo, ser disciplinado, paciente, tolerante, arranjar energia sabe-se lá de onde. Lembrei da panamenha que conheci em Granada. Ela também já estava há uns quatro meses mochilando e só voltaria para o Panamá em 25/12. Ela estava procurando um lugar para ficar em Granada pois tinha decidido não mais mochilar. Estava cansada.
É isso.
Todos com os quais me correspondo, todos, bem talvez com exceção do meu irmão, parecem pensar que eu estou vivendo uma aventura linda. A palavra “férias” aparece freqüentemente nos e-mails que me mandam. Quando digo que estou em uma cidade ou indo pra tal lugar, a resposta é sempre “que delícia” ou “que vidão hein ?” ou “ai, como eu queria férias de cinco meses” ou “aproveita que tá acabando hein..”.
Não os culpo. De verdade. É a vontade de ser gentil com o impulso quase inevitável dos humanos de criar fantasias. E também não estou me queixando. Estou adorando minha viagem. Teria feito tudo de novo mas por motivos absolutamente diferentes dos imaginados pela maioria das pessoas.
Parafraseando um belga (o Sven, falo dele aqui no diário, em Ljubljana), mochilar é hard work. Só que é um trabalho bem diferente do que estamos acostumados. Não baseia-se no cumprimento de tarefas.Não há ninguém para te orientar e te cobrar.Não há remuneração.Não há reconhecimento. Não há punições. É só você. É sobre você. É para você. As recompensas podem ser fantásticas mas é hardwork. É um trabalho de 24 horas por dia (lembro de ter lido que um repórter se disse surpreso ao saber que Ibsen só escrevia 5 horas por dia:
- Mas é muito pouco! Achei que o senhor trabalhasse mais.
- Meu jovem, eu escrevo 5 horas por dias mas eu trabalho as 24 – respondeu o escritor norueguês.).
Você toma decisões 24 horas por dia (digo 24h porque é muito comum você tomar decisões no meio da madrugada). Ninguém vai te dizer se você está certo ou errado. Ninguém vai compartilhar os resultados destas decisões.
Vou tentar contextualizar o que quero dizer.
Eu (e a grande maioria dos mochileiros que encontrei, detalhe importante, viajando sozinhos) larguei um bom emprego (bem, bom para os parâmetros comuns da sociedade). Morava razoavelmente bem com meu irmão.Amigos e família. Conforto. Calor. Amigas “coloridas”. Decidi deixar isso de lado por um tempo (bem, o emprego e o apartamento fui obrigado a me desfazer por razões óbvias). E para quê?
E esse é o coração da questão.
São as decisões que você toma aqui, são as atitudes que você tem aqui, são as atividades que você faz aqui que definem o para que!! Você está, literalmente, em um país estrangeiro com um monte de dinheiro em suas mãos (pelo menos no começo da viagem), um monte de gente jovem que você acaba conhecendo, uma oferta de diversão infinita, 5 meses com as 24 horas do dia absolutamente a seu dispor. As possibilidades são imensas, assim como são as tentações:
- acordar cedo ou dormir mais um pouco ? Nenhum chefe vai te demitir se você levantar às 11h...
- ficar dentro do orçamento ou ceder àquela tentaçãozinha de uma comidinha melhor, um alberguezinho melhor ou uma baladinha, afinal é sábado à noite e você está em Barcelona...
- ir embora do museu que está te contando a História daquele país depois de 2 horas lá dentro, quando seriam necessárias mais 2 horas? Quem freqüenta museus sabe como a cabeça, as costas e as pernas se sentem após 2 horas...
E as viagens noturnas? 8,9,10,17 (de Narvick a Estocolmo fiquei 17 horas no trem) horas viajando na madrugada, afinal viajando à noite economiza-se o dinheiro do albergue. Chegar no destino às 6 da manhã depois de 9 horas viajando em um ônibus e só poder fazer o check in às 15h? E perder dinheiro? Uma vez em Valencia perdi 70 euros, orçamento de dois dias. O que fazer, readequar os hábitos por uns dias ou tocar pra frente? E as ofertas de baladas?Todo santo lugar tem gente de férias te chamando pra sair. Ir na balada ou dormir? Poxa, mas essa australiana que ta indo é tão gostosinha..que fazer? E as escolhas de destino? Bilbao ou Salamanca? Quero ver o Guggenhein mas se for pra lá depois pra voltar para Portugal fica muito longe. E quanto tempo fico nessa cidade? Poxa, não agüento mais dormir três noites por cidade há quase 1 mês, acho que vou ficar aqui mais duas...mas aí não poderei ir a Sevilla. Que faço?
Igualzinho à vida.
Não estou dizendo que a viagem está sendo um inferno, muito pelo contrário, só quero deixar claro que é uma situação bem diferente de estar 05 meses em férias"
O tema do post não é a viagem (e muito menos o belga...) mas sim a liberdade. O quanto é foda termos liberdade. Assumirmos o timão do nosso barco. E quantos de nós estão preparados para isso?
Quis iniciar o post com esse trecho do diário pois só agora, quase três anos depois, eu entendi o que escrevi e o que o belga tinha dito. Só depois de ter passado pela experiência de ter tido meu próprio negócio, ter voltado ao mercado e me encontrar agora desempregado estou entendendo o que significa ter liberdade. E não me refiro, absolutamente, ao lado romântico da palavra mas ao aspecto cruel.
O hardwork do belga, muito mais do que o cansaço físico, referia-se ao cansaço emocional de ser tirado de um contexto onde podemos depositar as decisões da nossa vida nas mãos de outros entes (pais, patrões, valores sociais) para mergulhar, mesmo que temporariamente, em um onde você é 100% responsável pela gestão das únicas duas coisas que realmente importam: tempo e energia.
O fato de trabalhar em uma empresa, um órgão público ou qualquer outra organização onde você não seja o dono, além da pseudosensação de segurança, te dispensa de decidir o que fazer com o seu tempo. Alguém pensa para você. Se der merda, sempre há em quem colocar a culpa. Mesmo nos cargos mais altos, onde você deve dar as diretrizes, o seu campo de escolha é razoavelmente limitado, uma vez que as macro diretrizes já foram definidas. É muito comum as pessoas gastarem mais tempo e energia pensando como se proteger de possíveis falhas do que criando efetivamente.
Lembro quando eu tinha o restaurante diariamente eu precisava responder à seguinte pergunta "bom, e o que eu vou fazer hoje? Onde vou investir minha energia?". Pode parecer absurdo mas era muito angustiante.
Exatamente como me sentia na viagem.
Não sei se é um aspecto cultural, não sou antropólogo, mas a sensação que tenho é que não somos criados para assumir a responsabilidade de termos a nossa vida (novamente: tempo e energia) à nossa disposição.Talvez este seja um sintoma da imaturidade de um povo e crescer, quem sabe, significa passar por este estágio.
4 comentários:
Cara, gostei muito do seu post, principalmente pela narrativa, tá demais.
Como to na mesma situação que vc me identifiquei muito com o post e hoje por exemplo não tinha absolutamente nada para fazer e aí vem a pergunta: "bom, e o que eu vou fazer hoje?". É bem angustiante mesmo, eu confundia liberdade com férias e hoje vejo que não tem nada a ver. Concordo que não somos treinados para sermos livres, mas hj prefiro não saber o que fazer do que fazer o que alguém acha q deve ser feito.
legal! valeu pelo comentário!!
acho que tudo nessa vida é questão de acostumar-se a situações novas né..ainda mais quando a situação antiga está enraizada fortemente..enfim..
só não gaste suas manhãs tomando cerveja e vendo redtube...
Assunto interessante...a liberdade realmente é algo complicado, por isso mesmo a maioria acaba ficando presa a alguma situação, em uma zona de conforto onde outros decidem por ele. Assim ele pode culpar o chefe, esposa, mãe pelos perrengues...
Hoje a busca da liberdade é vendida como um valor absoluto, e eventualmente isso pode não ser verdade. Pode ser que existam poucas pessoas prontas e com estrutura para serem livres, para as demais, o esforço é demasiado.
Ou pode ser que essa angústia seja um apredizado de quem está descobrindo a liberdade....sei lá...
é, eu cada vez mais acho isso...que a dor (física ou emocional) é inerente ao crescimento...
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