"MAUVAIS SANG
Eu entrei no seminário com 12 anos de idade. Eu era um moleque de 12 anos. Era eu e mais 54 moleques. E lá havia hierarquia e uma ordem estabelecida cruel. Um jeito de manter a ordem que era cruel como em qualquer lugar onde homens gostam de manter a ordem. Eles dividiam os grupos dos moleques em “Maiores”, “Médios” e “Menores”. Eram clubes. Você fazia tudo dentro dos clubes. Faxina, recreação, almoço, jantar, etc. Você vivia dentro dos clubes. Eu tinha 12 anos. Deveria entrar no Grupo dos “Menores”. Porra nenhuma. Me colocaram no Grupo dos “Médios”. Tinha garoto de 13 anos no Grupo dos “Menores”. Fui reclamar com o Frei. Falei : “Ah, qual é? O Miguel tem 13 anos e tá no Grupo dos menores. Porque eu tenho 12 e tô no Grupo dos Médios?” O Frei respondeu secamente: “É que você sabe gritar, ele não sabe”.
Foi a primeira merda. Depois sucederam-se várias outras. Eu tinha que impor respeito em um grupo onde todos eram maiores do que eu. Se bobeasse, tava fudido. E eles queriam mais era me ferrar tipo “vamos fuder o di menor”. E fui ficando cada vez mais agressivo e mais amargo. Eu nunca fazia nada do que eles mandavam. Se me mandavam comer de boca fechada, eu fazia questão de comer de boca bem aberta. Se me mandavam ser o último da fila eu já entrava empurrando. Eu fazia questão de segurar o garfo do jeito errado. Eles não iam conseguir me educar. Então ficava de castigo tipo almoçando de joelhos ou então trabalhando na horta na hora do recreio, essas coisas. Tava cagando. Fui me tornando um moleque solitário e revoltado. Arrumava encrenca com todo mundo e deixava claro que tava andando pra eles e para sua ordem estabelecida. Então eles me mandavam pra trabalhar no sítio. Eu era um moleque urbano. Não entendia porra nenhuma de sítio. E lá tava eu arrancando soja, cortando arroz, cortando cana e arrancando feijão com as mãos todas estouradas de calos, enquanto os moleques bonzinhos tiravam o pó do escritório dos padres e tomavam banho de ducha quente. E a gente lá arrancando soja de manhã até à tarde. Quando a gente voltava pro seminário era uma ducha gelada e cair de cara nas tarefas escolares. Eu e outros moleques como eu, os do tipo que arrumavam encrencas. Do tipo que deviam sofrer corretivos. Eu não queria arrumar encrenca com ninguém. Eu só queria ficar na minha, lendo livros na biblioteca na hora do recreio. E eles me mandavam pra horta pra arrancar tiririca dos canteiros. E me colocavam de capitão do time de futebol. Eu nunca fui o melhor jogador. Eu era só um beque esforçado. Mas eles achavam que eu era o moleque certo pra colocar ordem na casa. Então me colocavam de capitão. E os outros moleques me odiavam ainda mais. Eu não queria colocar ordem na casa de ninguém, e nem provocar desordem. Eu só queria subir até a torre da igreja e ficar lá, sozinho, pensando que um dia minha vida ia melhorar. E cada dia que passava eu só arrumava mais encrenca. E ia ficando com mais ódio de tudo. Saía na porrada com algum outro garoto e ia pro castigo. Então eu só ficava mais revoltado. E eu odiava todo mundo. E eu lembro que eu odiei o Luis Guilherme. Eu odiei esse moleque pra caralho. Eu briguei feio com ele. Eu prometi pra mim mesmo que ia odiar o Luis Guilherme pelo resto da minha vida. E um dia entrei no dormitório e ele tava deitado na cama. E tinha uma senhora do lado dele, chorando muito. E eu não entendi o que tava acontecendo. E eu desci pro pátio e fiquei lá, sozinho como ficava todas as tardes quando não ia pro sítio. Enquanto eu mexia com um graveto no formigueiro fiquei pensando naquela mulher chorando do lado da cama do Luis Guilherme. Alguém me disse que era a mãe dele. Na minha cabeça de moleque que tinha muito ódio não conseguia entender que o Luis Guilherme tinha uma mãe como eu tinha, e que ainda mais, que sua mãe o amava. Eu não conseguia entender como alguém conseguia amar o Luis Guilherme, mesmo se essa pessoa fosse a mãe dele. Acho que eu também não conseguia entender como alguém podia me amar. Eu não acreditava que alguém pudesse me amar. Ninguém podia amar um garoto com tanto ódio dentro de si. No dia seguinte, eu tava no pátio e tocaram a campainha e convocaram todos para a capela. A gente foi lá e o padre nos contou que o Luis Guilherme tinha morrido de Meningite. Eu nem sabia que porra era Meningite. Só consegui entender que o Luis Guilherme tinha morrido. Aquele moleque por quem eu nutria um ódio eterno tinha morrido. Não existia mais. E era por isso que a mãe dele tava chorando. Ela sabia que o Luis Guilherme ia morrer. E eu fiquei com vontade de parar de odiar. Eu fiquei com vontade de amar a mãe dele. Eu fiquei com vontade de chorar, mas eu era o moleque que sabia gritar, o moleque que levava porrada numa briga, que perdia a maioria das brigas que entrava já que os moleques eram sempre maiores do que eu, e eu só apanhava, mas eu era o moleque que não amolecia nunca, que não soltava nenhum grito de dor. De dor, nunca. Eu não podia chorar. Eu podia no mínimo parar de odiar, mas ninguém podia saber disso. Eu vi o caixão doLuis Guilherme na missa de corpo presente e eu não odiava mais aquele moleque, mas eu não queria que ninguém soubesse disso. Todos deviam pensar que eu continuava odiando o Luis Guilherme. Que eu era o moleque que guardava um ódio profundo e imorredouro dentro de si. E quando eu vi levarem o caixão do Luis Guilherme embora, então eu mordi o meu lábio com força. Eu sequei meus olhos de um jeito que eu jamais saberia fazer de novo. Ninguém nunca soube de nada, mas naquele dia eu aprendi que sentimentos bons costumam ser expelidos como a fumaça de uma chaminé se a gente não souber cuidar deles. Naquele dia em que levaram o caixão do Luis Guilherme embora eu quis correr até a porta da igreja e pedir desculpas, mas eu nunca fiz isso. E eu fui ficando assim, em silêncio, sem conseguir dizer o que realmente penso, pelo resto de minha vida. E eu cresci assim, guardando quase tudo dentro de mim. E eu já teria morrido de úlcera se não tivesse aprendido a escrever. Por isso, espero que Deus continue me quebrando essa. Que me deixe com essa manha de escrever o que sinto, porque há muito tempo que sei que de outro jeito eu não sei fazer. Por isso, se puderem me perdoar, eu agradeço."
Texto de Mario Bortolotto - publicado em http://atirenodramaturgo.zip.net/
3 comentários:
Cá....que texto...sou fa desse cara. Me identifico muito com o trabalho dele.bjssss
eu conheço bem pouco...as vezes entro no blog dele e acho perolas como essa..
bjão
Antes só tinha perolas no blog . Agora tem muita propaganda e isto estragou um pouco, mas ainda tem coisas boas...bjs
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