sexta-feira, 3 de julho de 2009

"- Deus é simples. Tudo o mais é complexo. Não procure valores absolutos no mundo relativo da natureza.

Estes preceitos filosóficos chegaram suavemente aos meus ouvidos. Encontrava-me no templo, em silencio, diante da imagem de Kali.Voltei-me e deparei-me com um homem alto, cuja roupa, ou falta dela, demonstrava tratar-se de um sadhu errante.

- O senhor realmente captou a desorientação dos meus pensamentos! - sorri agradecido.

- A confusão entre aspectos benignos e terríveis da natureza, simbolizados por Kali, já intrigou cabeças mais sábias do que a minha.São poucos os que conseguem desvendar este mistério. O bem e o mal constituem o enigma desafiador que, como uma esfinge, a vida coloca perante cada inteligência para ser decifrado.Por não procurar encontrar resposta, a maioria dos homens paga esta negligência com a própria vida, uma condenação tão válida hoje como nos tempos de Tebas. Aqui e ali, uma figura altaneira e solitária ergue-se e não desiste da luta, extraindo da dualidade de maya a verdade da unidade indivisível.

- O senhor fala com convicção.

- Há muito venho fazendo uma introspecção sincera, que é uma maneira extremamente dolorosa de alcançar a sabedoria. Examinar-se a si mesmo, olhar incansavelmente os próprios pensamentos, é uma experiência marcante e devastadora que esmaga o ego mais obstinado.Mas a verdadeira auto-análise opera com precisão matemática para produzir profetas. O caminho do "expressar-se a si mesmo", do reconhecimento individual produz egoístas, convencidos de terem o direito de interpretar Deus e o Universo à sua maneira.

- Sem dúvida a verdade retira-se humildemente perante essa arrogante originalidade - eu disse, apreciando a discussão.

- O homem não consegue entender a verdade eterna antes de libertar-se de suas pretensões. A mente humana, deteriorada pela degradação dos séculos, agita-se com incontáveis desilusões mundanas, numa vida repulsiva. (...)

- Venerável senhor, não tem compaixão pelas massas desorientadas?

O sábio ficou em silêncio durante alguns instantes. Depois deu uma resposta evasiva:

- Amar tanto o Deus invísivel, repositório de todas as virtudes, quanto o homem visível, que aparentemente não possui virtude alguma, é, muitas vezes, frustrante! No entando, nossa criatividade está à altura deste intrincado labirinto.A busca interior mostra prontamente a unidade de todas as mentes humanas: a forte afinidade da motivação egoísta que, pelo menos neste sentido, deixa transparecer a fraternidade do homem.Como resultado dessa niveladora descoberta, surge uma desoladora humildade, que amadurece sob forma de compaixão por seus semelhantes, cegos ao potencial curativo da alma que está à espera de ser explorado.

- Os santos de todas as épocas tiveram, como o senhor, compaixão pelos sofrimentos do mundo.

- Só o homem superficial não reage às aflições alheias, pois está afundado em seu próprio e mesquinho sofrimento. Ele continuou: - Aquele que pratica um exame minucioso de si mesmo experimentará uma expansão da compaixão universal, libertando-se das exigências ensurdecedoras do ego.É nesse tipo de solo que o amor de Deus floresce. A criatura finalmente volta-se para o Criador, mesmo que seja apenas para perguntar angustiada: "Por que, Senhor, por que?". Por meio das terríveis chicotadas da dor, o homem é conduzido, enfim, à Presença Infinita, cuja beleza deveria ser a única a atraí-lo."

Autobiografia de um Iogue, Paramahansa Yogananda

Nenhum comentário: